Ele morreu há pouco mais de 13 anos. 13 anos e três meses para ser exato. Era uma quarta-feira, dia 21 de dezembro, e o próximo final de semana era Natal. Tínhamos a mesma idade: 20 anos. Nos conhecíamos há apenas 14 dias. Duas semanas. Metade de um mês.
A primeira lembrança que tenho foi dele passando por mim vestindo aquela roupa, um uniforme todo preto e elegante, na festa de inauguração do salão em que ele trabalhava. Ele me ignorou completamente, mas era compreensível, era muita gente, tudo precisava estar perfeito e ele estava trabalhando, afinal. Eu era convidado. Na verdade, minha mãe era e me levou, já que ela e a dona do salão eram grandes amigas.
Eu não desisti e, dias depois, com a ajuda da minha mãe, que era cliente dele, consegui chamar um pouco de atenção e conversamos pela primeira vez no Facebook. Daí em diante, os papos confirmaram o por quê de ele não ter me dado atenção na festa:
"Sou tímido", "achei que você era hétero", etc.
Mas bastou alguns dias conversando para que nos encontrássemos pessoalmente. Infelizmente não lembro do primeiro encontro, exatamente, mas sei que ele foi a primeira pessoa com piercing na língua que beijei.
Lembro também dos passeios de moto, dos fins de tardes à beira do Porto do Baé e de um momento específico em que estávamos sozinhos na casa dele, nus pela primeira vez, em que perguntei o que era aquele furo na protuberância de pele logo acima do seu umbigo.
Que ingenuidade a minha, era a marca de outro piercing. Só fui me dar conta dias depois, já depois de sua partida. O mais triste, porém, foi ele ter mentido que era uma cicatriz. Triste não por que ele mentiu, mas o por quê ele o fez: tinha vergonha daquilo, do próprio passado.
Não quero entrar em méritos dos porquês ele estava neste processo de mudança que o fez sentir vergonha dos últimos anos, tudo isso envolve a patroa que era (é) evangélica e o "ajudou" a mudar de vida.
A questão é que ele era transformista, ou dragqueen, e premiada!
Mas, aparentemente, tinha abandonado aquela vida por uma mais discreta, mais "máscula" até, por conta dessa patroa, por conta própria também talvez e sabe-se lá mais o porquê. Mas isso foi o que descobri depois de sua morte, então realmente não importa.
Ainda durante os 14 dias de "namoro", a única coisa que restou foi o histórico de conversas no Facebook, e eu reli hoje, depois de passar por lutos metafóricos e literais e ler livros sobre lutos metafóricos e literais. Lembrei dele e reli tudo, com muita tristeza.
Naquela época, coincidentemente, ambos iríamos tirar férias no próximo fevereiro e o sonho dele era conhecer Salvador. Algo tão simples, tão "fácil" de realizar. Mal tivemos tempo de planejar a viagem. Outro sonho dele era fazer faculdade, queria fazer ciências contábeis e deixar o trabalho de cabeleireiro. Quantos sonhos mais ele devia ter e que foram enterrados com ele antes mesmo de qualquer chance de realizá-los.
Tanta coisa em tão pouco tempo. Tudo escorreu pelas minhas mãos, por nós, já que eu fiquei.
Era uma quarta-feira, como eu disse. Eu voltava do almoço para mais um dia qualquer de trabalho. Dirigia o carro da minha mãe, pois ela ficava com o veículo do trabalho dela, e morávamos longe do centro.
Não lembro se já contei a história aqui, mas já contei várias vezes em outras ocasiões e novamente: parei na esquina do trabalho por conta do semáforo, que estava vermelho. Não estacionei antes, pois era um inferno encontrar vaga por ali, então eu precisava cruzar aquela que era a principal Avenida da cidade e, quando deu verde, eu só fui devagar, olhei à esquerda e a primeira coisa que vi foi uma ambulância socorrendo um homem loiro vestindo um uniforme preto e elegante.
Eu já sabia, de algum jeito eu já sabia, era óbvio e só não quis acreditar. Estacionei o mais rápido que eu pude, corri para a loja de móveis planejados onde eu trabalhava e que era quase em frente ao local do acidente - a ambulância já havia o levado - e liguei para o salão em que ele trabalhava. Perguntei se ele estava lá e a resposta foi de que ele havia acabado de sair para almoçar. Então eu precisei avisar que era ele quem poderia ter sofrido um acidente de moto na Avenida e que avisassem a mãe dele para todos terem certeza.
Nesse meio tempo eu precisei visitar um imóvel em construção, tirar medidas de paredes, um trabalho simples, que parecia simplesmente impossível. Naquela altura eu não sabia mais quantos centímetros formam um metro sequer. Tentei, mas voltei para a loja onde, então, eu soube que ele estava no pronto socorro, que o trauma no crânio havia sido gravíssimo e ele estava vivo apenas com a ajuda de aparelhos, já que o coração continuava batendo.
Fui liberado do trabalho, fui ao hospital esperar com a família e amigos, mas bastou algumas horas mais para sabermos o que já sabíamos, não havia solução. O caminhão que o acertou na cabeça fez um estrago muito grande, mesmo com o uso de capacete.
Eu nunca soube como aconteceu, acho que ninguém, ele apenas caiu da moto naquela maldita avenida principal da cidade, onde a descida era amena, e a moto foi para a calçada, enquanto ele foi parar debaixo de um veículo que pesa dezenas de toneladas.
Depois do anúncio oficial da morte, eu lembro apenas de flashes: fui ao velório, que aconteceu na casa dele, toquei no corpo já sem vida, enquanto minha mãe me abraçava e chorava, fiquei por alguns minutos no quarto dele, agora sozinho, sem carinho, sem conchinha, sem sustentação. Fui ao enterro no dia seguinte e, quanto o túmulo foi fechado, uma pequena ficha caiu, nunca mais o verei. Após isso, eu não conseguia comer, comi meia pera em dois dias, dormi muito e, depois, o processo do luto aconteceu como acontece com todo mundo, acredito eu.
Não há nada demais na história em si, e ao mesmo tempo há tudo. É um episódio triste da minha vida, como acontece com absolutamente todas as pessoas do planeta Terra. Eu também não sei que coisas este trauma desencadeou na minha vida. Eu sinceramente não sei se isso me marcou a ponto de eu me tornar alguém diferente do que eu era, mas provavelmente sim.
Acontece que eu acho que mudei muito e muito de tudo que acontece na minha vida me muda. Graças ao Universo acredito que a grande maioria dos acontecimentos me fez genuinamente bem, trazendo mudanças que me fazem ser uma pessoa melhor, mas outras me fizeram mal e me fazem ter atitudes de uma pessoa não tão boa. Espero que eu seja mediano, ao menos.
Acho que fico por aqui, já foi muito doloroso reviver tudo isso, mas senti necessidade de escrever isso, então aí está. Como acredito em vida após morte em terra, espero que Junior esteja bem, ele definitivamente merece paz, seja em espírito ou, quem sabe, em uma nova vida ganha em algum lugar por aí.
Enquanto a mim, enquanto eu viver acho que talvez algumas coisas não mudem: a vontade de fazer o que quero, o amor que tenho pela vida, a importância que dou pra quem está próximo de mim, o reconhecimento de que eu posso e devo errar para poder seguir e a certeza absoluta de que eu mereço muito tudo de melhor que possa vir e que eu mereci tudo de melhor que já veio.
Das pessoas da minha família que amo, dos amigos que amo, dos amores que amei e ainda amo, do conhecimento que adquiri, dos trabalhos que conquistei, das viagens que fiz, dos auto cuidados aos quais me proporcionei, da paz que recebi, tudo que eu mereci e hei de merecer um dia após o outro até que seja, então, a hora de partir, demore ou não, não tem problema quando. Tudo tem que valer a pena!
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